Como você quer morrer?
À primeira vista, tal questionamento pode parecer um tanto mórbido. No entanto, refletir sobre o fim da vida é essencial. Encorajar o indivíduo a discutir com seu médico como ele gostaria de ser tratado nos seus últimos dias pode ser a chave-mestra para uma passagem final tranquila, ao invés de uma fase final de agonia e distanciamento dos entes queridos.
Pensar sobre esse assunto, quando a pessoa se encontra ativa e consciente de seus atos, não apenas auxilia a decisão médica, como também de familiares e entes queridos no momento em que o paciente já não puder responder por si. Frequentemente nos deparamos com situações difíceis, como, por exemplo, a de pessoas com Doença de Alzheimer avançada que não tiveram a oportunidade de discutir com seus médicos como gostariam de ser conduzidas no momento em que não puderem mais opinar de forma autônoma.
Será que não valeria a pena, então, buscar informações desde já para poder orientar quem vai cuidar de você no futuro?
Nos últimos cem anos, a forma como as pessoas morrem mudou muito. A expectativa de vida do ser humano já esteve próxima dos 35 anos de idade, em época em que as pessoas faleciam principalmente de forma súbita e por doenças infectocontagiosas. Atualmente, projeções estatísticas para as próximas décadas mostram que a população de nonagenários e centenários aumentará exponencialmente.
Todos os avanços em Saúde Pública, saneamento, desenvolvimento de antibióticos, bem como o avanço tecnológico, contribuíram para que as pessoas vivam mais e melhor, ou pelo menos por mais tempo. O que devemos olhar com muito cuidado é o lado oposto dessa equação: pessoas que, a despeito do diagnóstico de uma doença grave, progressiva, sem possibilidade de cura, podem não ser suficientemente informadas e provocadas a manifestar seus gostos e preferências.
Atualmente, um dos grandes desafios da Medicina é como lidar com as doenças crônicas, cujas características comuns incluem serem progressivas e muitas vezes incuráveis. Diversas são as doenças que evoluem com complicações recorrentes ao longo do tempo: doenças cardíacas, pulmonares, renais, neurológicas. Qual a melhor forma de assistir o paciente portador de uma doença crônica quando não há perspectiva de cura?
Ao receber um diagnóstico, o paciente é submetido ao tratamento específico para o seu caso. Entretanto, haverá momentos em que, mesmo com o melhor tratamento possível, a doença avançará. Existem situações em que uma doença avança até atingir um estágio que chamamos de terminalidade. Neste momento já não haverá condições para uma vida consciente e autônoma, passível de ser vivida na sua forma plena. O indivíduo se torna dependente física e/ou intelectualmente, muitas vezes debilitado por longos períodos de internação hospitalar, vulnerável a ponto de certos procedimentos invasivos se tornarem fúteis por não serem capazes de recuperar a qualidade de vida que as doenças tomaram.
Por estas razões, é importante o conhecimento do termo ortotanásia, que significa respeitar o momento natural da morte de cada indivíduo, priorizando o controle dos sintomas desagradáveis (como dor, náusea, falta de ar e outros) e afirmando a dignidade daquele indivíduo e de sua biografia. É importante ressaltar que ortotanásia é diferente de eutanásia, prática que acelera a morte de forma ativa e assistida. Eutanásia não é permitida pela legislação brasileira. Já a ortotanásia é reconhecida pelo Código de Ética Médica e se aplica às situações clínicas irreversíveis e terminais, cabendo ao médico propiciar aos seus pacientes todos os cuidados paliativos apropriados para permitir uma morte digna e sem dor ou sofrimento. Não implica, portanto, em abreviar a vida, mas em não prolongá-la de forma artificial, pois se entende que, dentro do contexto da fase avançada na doença, sem possibilidade de cura, em algum momento a história natural daquela pessoa poderá se cumprir.
O que pode ser feito, então?
É previsto no Brasil, desde 2012, o Testamento Vital. De uso amplamente difundido nos EUA e em diversos países, trata-se de em um documento no qual qualquer pessoa pode deixar expresso seu desejo quanto ao manejo invasivo em caso de doença grave e ameaçadora a vida. Podem-se detalhar quais procedimentos a pessoa aceitaria ou não ser submetida: diálise, respirador artificial, resssucitação cardiopulmonar, tubo para alimentação. Esse relato é documentado em prontuário médico, o que pode ser feito em consultório, com o médico de confiança do paciente. É possível, apesar de não haver uma legislação específica que exija, a análise jurídica por um advogado com conhecimento na área e a nomeação de um procurador, pessoa de confiança do paciente.
Com o Testamento Vital é possível preservar a autonomia do indivíduo, após o devido esclarecimento das questões relevantes, estando o mesmo livre de pressões indevidas. O planejamento num momento tranquilo da vida pode facilitar a tomada de decisões com maior clareza.
Quando não há um testamento vital, mas o paciente se encontra em agravo de sua doença, como uma internação, por exemplo, podemos lançar mão de um planejamento de cuidados avançados em fim de vida.
Diretivas Antecipadas de Vontade é um termo genérico de documentação da manifestação de vontade para cuidados e tratamentos médicos criado na década de 1960 nos EUA. As preferências documentadas deverão ser respeitadas pela equipe de saúde que assiste o paciente dentro dos limites pré-definidos.
Um estudo australiano publicado em 2010 (British Medical Journal) com idosos internados por doenças cardíacas e respiratórias mostrou impacto positivo em idosos e familiares que foram estimulados a refletir sobre seus objetivos, valores e crenças, bem como discutir e documentar suas futuras escolhas sobre cuidados de saúde. Obteve-se melhor índice de satisfação nos pacientes que receberam alta, assim como redução dos níveis de estresse, ansiedade e depressão nos familiares dos pacientes que faleceram ao longo da internação. Outro estudo, publicado em 2010 (New England Journal of Medicine), avaliou pacientes com diagnóstico de câncer de pulmão avançado, com metástases. Paradoxalmente, o grupo de pacientes que recebeu abordagem de Cuidados Paliativos precoce, no momento do diagnóstico oncológico, obteve maior sobrevida, ou seja, viveu mais tempo em relação ao grupo de pacientes que foi submetido ao tratamento padrão habitual. Além disso, no primeiro grupo houve menor índice de depressão e melhor índice de qualidade de vida.
Desta forma, é possível entender que a discussão sobre cuidados em fim de vida não é apenas necessária, mas também essencial para uma melhor assistência ao doente.
Se você ficou com dúvidas após ler este artigo, lembre-se que você não precisa resolver tudo sozinho. O geriatra é o médico mais capacitado para avaliar os riscos e benefícios de intervenções diagnósticas e terapêuticas nos indivíduos de idade avançada, com a capacidade de contextualizar dentro da história de vida e valores de cada um. Não hesite em procurar um profissional capacitado para lhe ajudar.
Dra. Juliana Pastorelli Braga
Referências
1. Conselho Federal de Medicina , Código de Ética Médica. Resolução CFM nº 1931/2009.
2. Detering, K. M., et al., The impact of advance care planning on end of life care in elderly patients: randomized controlled trial. The British Medical Journal, 2010. 340:c1345.
3. Gawande, A., Mortais – Nós, a medicina e o que importa no final. 1. ed., Objetiva, 2015.
4. Temel, J. S., et al., Early Palliative Care for Patients with Metastatic Non-Small-Cell Lung Cancer. The New England Journal of Medicine, 2010. 363: 733-42.
Dra. Juliana Pastorelli, CRM 134.192, é médica formada pela Faculdade de Medicina da Universidade de Taubaté (UNITAU), com especialização em Clínica Médica pelo Hospital Beneficência Portuguesa de São Paulo e especialização em Geriatria pelo Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP). Possui títulos de especialista pela Sociedade Brasileira de Clínica Médica (SBCM) e pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG). Atua como médica colaboradora do Ambulatório de Fragilidade do Serviço de Geriatria do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP). Atende em consultório no endereço que consta no rodapé desta página.