Uma das queixas mais negligenciadas por médicos e pacientes é a dor muscular. Quantas vezes já não ouvimos a frase “fique tranquilo, deve ser só uma dor muscular…”? Para os reumatologistas, no entanto, que atendem uma população que sofre muito com esse sintoma, dores de origem muscular representam por vezes um grande desafio.
Dentre as mais diversas dores que podem ocorrer em um músculo, uma das mais frequentes é a síndrome dolorosa miofascial (SDM). Um estudo americano (1) mostrou que até 30% dos atendimentos médicos por dor eram, na verdade, por síndromes miofasciais. Esta entidade, descrita apenas na década de 80, se refere a um tipo de dor mal localizada e mal caracterizada, geralmente profunda, acompanhada de sintomas como rigidez, vermelhidão, sensação de queimação ou choque e fraqueza local (2).
O desenvolvimento da SDM decorre de uma contração muscular ineficaz, seguida de uma perda da capacidade do músculo de soltar as suas fibras e retornar à posição de repouso. Essa microcontratura sustentada faz com que a musculatura local fique sem oxigenação e passe a liberar substâncias que causam dor (sinalizando ao cérebro que algo está errado naquela região). À medida que essa contratura se mantém, essas substâncias algiogênicas (que causam dor) aumentam em quantidade e se espalham para outros territórios, causando dor à distância, mesmo em regiões saudáveis. E o pior: essa condição também modula os nervos do paciente, fazendo com que ele fique mais sensível à dor como um todo. Se não for quebrado o ciclo, o paciente, depois de algum tempo, pode passar a sofrer de dor crônica, uma condição na qual o cérebro passa a sinalizar a dor mesmo na ausência do estímulo doloroso!
Na prática, o estímulo que deflagra uma SDM pode ser tanto um trauma (uma torção, uma queda, um “mau jeito”) quanto movimentos do dia-a-dia em uma estrutura anatômica despreparada, como um segmento muscular pouco condicionado, fraco ou posicionado inadequadamente. O segundo mecanismo é, de longe, o mais comum. De maneira concreta, imaginemos um indivíduo que utilize o carro no seu dia-a-dia com frequência. É possível que, devido ao posicionamento do seu volante ou do seu banco, associado ao pouco desenvolvimento muscular e a sua postura, ele mantenha a musculatura dos ombros tensionada em uma posição que exige muito trabalho daquela região, gerando contraturas ineficazes e relaxamentos incompletos. Se o paciente mantém a atividade com frequência, sem ajustes, um destes relaxamentos incompletos pode iniciar o ciclo de lesão mencionado acima. Então começam as dores e o indivíduo passa a tentar se adaptar, geralmente criando posturas ainda mais inadequadas e contraturas em outras áreas, aumentando o número de fibras musculares doentes e criando um ciclo perpétuo e nefasto de dor e autolesão.
Uma característica marcante da SDM é a falta de resposta às terapias convencionais para dor (3). Como envolve um mecanismo físico de formação e uma adaptação nos nervos à dor, os medicamentos para dor comumente aplicados em torcicolos ou pancadas geralmente possuem efeito fugaz ou mesmo inexistente nestes pacientes. As melhores medidas para o tratamento da SDM envolvem obrigatoriamente um estímulo para a liberação dos pontos contraídos. Diversos estudos demonstram a eficácia dos alongamentos e da reabilitação física (com medidas de fortalecimento aplicadas de maneira sistemática e progressiva) tanto na melhora imediata quanto na prevenção de novos surtos de SDM. Técnicas locais de soltura, como massagem ou compressas térmicas, também são descritas com taxas de sucesso variáveis. Por fim, muitos estudos também comprovam a eficácia de técnicas minimamente invasivas, como o agulhamento seco e a infiltração local com anestésico (3,4), que podem ser uma opção para os pacientes que se sentem confortáveis com agulhas e que dispõem de profissionais qualificados para a execução (em geral reumatologistas ou fisiatras).
Por fim, quanto ao prognóstico (expetativa de evolução da doença), infelizmente, boa parte dos pacientes que sofrem com SDM acabam evoluindo com dor crônica e refratária, com grande impacto na qualidade de vida e funcionalidade. O maior motivo desta triste estatística é a falta de diagnóstico e manejo adequados, geralmente focados em exames subsidiários desnecessários (é comum que todos os exames sejam praticamente normais na SDM) e terapias exclusivamente medicamentosas. Quando feito de maneira precoce e correta, porém, o tratamento da SDM (combinação de soltura dos pontos contraídos com técnicas de reabilitação) é muito bem sucedido na maior parte dos casos (4).
Dr. Jean de Souza
Referências
- Skootsky, S.A., et al., Prevalence of myofascial pain in general internal medicine practice. The Western Journal of Medicine, 1989. 151(2): p157.
- Travell, J.G., et al., Myofascial Pain and Dysfunction: The Trigger Point Manual. Williams & Wilkins, Baltimore, 1983.
- Desai, M.J., et al., Myofascial pain syndrome: a treatment review. Pain and Therapy, 2013. 2(1): p21-36.
- Liu L., et al, Effectiveness of dry needling for myofascial trigger points associated with neck and shoulder pain: a systematic review and meta-analysis. Archives of Physical Medicine and Rehabilitation, 2015. 96(5): p944-55.
Jean de Souza é médico formado pela Universidade de São Paulo, com residência médica em Clínica Médica e Reumatologia pelo Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP). Atualmente atua como doutorando do serviço de Reumatologia do HC-FMUSP na área de reabilitação física nas miopatias inflamatórias e atende em consultório no endereço que consta no rodapé desta página.