Você já parou para pensar que gastamos boa parte de nossas vidas dormindo? A quantidade de sono ideal para cada indivíduo adulto pode ser variável, mas gira em torno de oito horas. Por simples extrapolação matemática, chegamos à conclusão de que ficamos aproximadamente um terço de nossa existência nos braços de Morfeu. Em metrópoles, de intensa agitação noturna, e diante dos atrativos da vida moderna, que aumentam nosso tempo de exposição a luz artificial (se você estiver lendo deitado com seu tablet ou smartphone é um exemplo vivo), tendemos a dormir tarde, sem que nossos trabalhos ou estudos permitam flexibilidade no horário de despertar, fazendo da privação crônica de sono um dos principais problemas dessa inexorável parte de nossas vidas. O contrário também é comum, com pessoas que relatam dificuldade para iniciar ou manter o sono, a chamada insônia, que ocorre em associação a transtornos psiquiátricos, doenças sistêmicas (como alterações de hormônios da glândula tireoide) ou simplesmente por maus hábitos que atrapalham o processo de adormecer (desligou o tablet?).
A Apneia Obstrutiva do Sono é uma condição médica extremamente comum e, muitas vezes, subestimada e pouco reconhecida. A apneia (o ato de parar de respirar – o mesmo em que mergulhadores de profundidade se especializam) pode ocorrer durante o sono por diferentes motivos, sendo o mais comum deles a obstrução à passagem do ar pela garganta, de onde vem o nome da doença. A hipopneia, que é a redução no fluxo aéreo, é outra característica comum dessa síndrome e tem consequências clínicas idênticas à apneia.
Mas por que durante o sono? Enquanto dormimos, ocorre, de maneira fisiológica, um relaxamento de toda a nossa musculatura “voluntária”, inclusive da faringe. Em indivíduos predispostos, esse relaxamento gera colapso, ou seja, seu fechamento, impedindo que o ar chegue até os pulmões. Existem mecanismos que “avisam” ao nosso cérebro quando isso ocorre, de maneira que acordamos para recuperar o “tônus” muscular, mesmo que não sejamos capazes de perceber isso – o resultado é o chamado “micro-despertar”.
Imagine agora uma noite tranquila de sono sendo interrompida inúmeras vezes por episódios de parada parcial ou completa da respiração, de maneira tão prolongada que o oxigênio no sangue cai (às vezes a níveis bastante críticos) e acordamos, mesmo sem perceber, simplesmente para voltar a respirar, retornando a dormir na sequência, tão somente até o próximo episódio – que pode ser daqui a 12 minutos em casos leves ou até em menos de 1 minuto em casos mais severos. Impossível imaginar que isso não leve a sérias consequências ao organismo – e leva! A Síndrome da Apneia Obstrutiva do Sono (ou simplesmente SAOS) está associada a problemas que vão desde acidentes de trânsito (pela sonolência), piora no desempenho cognitivo, aumento de resistência à insulina e diabetes, até aumento direto de risco cardiovascular, incluindo hipertensão (“pressão alta”) – é, inclusive, a causa mais comum de hipertensão “resistente”, ou seja, que é difícil de controlar mesmo com muitos remédios – infarto agudo do miocárdio, insuficiência cardíaca, AVC (“derrame”) e arritmias.
Estima-se que 2 a 4% da população sofra da doença, o que é muito – é aproximadamente a mesma prevalência, por exemplo, da enxaqueca (uma causa bastante famosa de cefaleia ou dor-de-cabeça). Um estudo conduzido na cidade de São Paulo com voluntários adultos encontrou uma impressionante prevalência de SAOS acima de 30%. A chance de se ter a síndrome aumenta progressivamente com a idade. Os homens também são mais afetados do que as mulheres (o risco é basicamente o dobro), mas isso tende a se igualar quando as mulheres atingem a menopausa. O principal fator de risco é a obesidade, especialmente do tipo “central” (que é mais frequente no sexo masculino e acomete mais as regiões do pescoço e da barriga).
O sintoma mais comum da SAOS é o ronco – por esse motivo, torna-se fundamental questionar ativamente o parceiro ou alguém que durma próximo, afinal, é quem mais se incomoda com o barulho. A pessoa pode acordar com sensação de sufocamento (manifestação da própria apneia, a parada da respiração) ou ser vista com a impressão de que está se “engasgando” enquanto dorme. É bastante comum o sono não ser reparador, com a sensação de que o dia já se inicia cansado. A sonolência excessiva durante o dia é outro pilar da doença, podendo levar a cochilos incontroláveis ou em situações inusitadas, comprometendo o desempenho no trabalho e até levando a sérios acidentes de trânsito. Não é incomum vir associada a sintomas depressivos e irritabilidade, podendo prejudicar também o desempenho sexual, seja por redução da libido ou por disfunção erétil (impotência).
Para se chegar ao diagnóstico, é necessário excluir causas alternativas dos sintomas e realizar um exame dirigido para avaliação do sono – o “padrão-ouro” é a polissonografia noturna. É preciso passar uma noite em um laboratório especializado, com sensores que avaliam atividade elétrica das ondas cerebrais, movimento, oxigenação e fluxo respiratório. Em alguns casos, é possível realizar o exame com um equipamento “simplificado”, em casa mesmo – a chamada poligrafia noturna.
Para quem já tem o diagnóstico, existem algumas alternativas de tratamento:
- Medidas gerais: perder peso, evitar o uso de álcool ou sedativos (que relaxam ainda mais a musculatura, facilitando a ocorrência da apneia), dormir de lado e não de barriga para cima.
- Próteses dentárias de avanço mandibular: estão indicadas em casos mais leves de apneia ou em ronco primário.
- Fonoterapia: alguns exercícios orofaríngeos ajudam a melhorar o ronco e a apneia em casos leves a moderados.
- CPAP: é o principal tratamento disponível na atualidade e considerado de escolha. Consiste, basicamente, na aplicação de um fluxo constante de ar pelas vias aéreas através de um aparelho específico, o que impede que elas se fechem durante o sono, prevenindo a ocorrência da apneia.
- Cirurgias: existem diversas cirurgias propostas para o tratamento da SAOS – a mais comum delas é a uvulopalatofaringoplastia (conseguiu falar?). O grande problema é escolher o melhor candidato a essa modalidade de tratamento, que tem de ser muito bem indicada, o que ocorre especialmente naqueles portadores de alguma anormalidade crânio-facial. Para os outros, o CPAP permanece como tratamento de escolha.
- Não existe tratamento medicamentoso disponível que tenha se mostrado eficaz. Os populares dilatadores nasais tampouco servem para alguma coisa, além do charme das nadadoras (ou nadadores), afinal, o problema da apneia costuma ser no espaço atrás da língua e não no nariz. Dos tratamentos mais recentes, o mais promissor parece ser um dispositivo que estimula o nervo da língua, recentemente aprovado pelo FDA (a agência reguladora de saúde norte-americana).
Assim, fique atento: se você cochilou três vezes lendo esse texto, é homem (ou mulher na menopausa), está acima do peso, ronca e toma remédios para pressão alta, a chance de ter apneia obstrutiva do sono é infinitamente maior do que poderia imaginar. Procure um médico que pode lhe auxiliar no diagnóstico e no tratamento dessa doença tão comum e tão pouco comentada.
Dr. Alexandre F. Amaral
Referências
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2. Tufik S., et al., Obstructive sleep apnea syndrome in the Sao Paulo Epidemiologic Sleep Study. Sleep Medicine, 2010. 11(5): p441-6.
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4. Guimarães, C. K., et al., Effects of Oropharyngeal Exercises on Patients with Moderate Obstructive Sleep Apnea Syndrome. American Journal of Respiratory and Critical Care Medicine, 2009. 179(10): p962-966.
5. Jun, J. C., et al., Sleep apnoea. European Respiratory Review, 2016. 25(139): p12-18.